domingo, janeiro 08, 2012

Constituição Cidadã

Certo dia achei no lixo, toda rasgada, remendada, cuspida e cagada, um exemplar da constituição brasileira, a chamada "Constituição Cidadã". Eu já tinha ouvido falar dela, mas não sabia o que era isso. Sabia de ouvir uns coroas dizer que a constituição tem que ser respeitada, que é igual a jogo do bicho, que vale o que tá escrito.

Assim mesmo. Eles falando e eu catando lixo.Fingindo que não tava prestando atenção na conversa deles. Fiquei ali, cata uma lata, uma bituca de cigarro e eles lá tomando cerveja e danando a falar. E eu aprendendo. Fiquei com aquilo na cabeça: vale o que tá escrito.

Eu pouco sei ler. Aprendi a soletrar e mal escrevo alguma coisa. Sei assinar meu nome e garrancho mais umas coisinhas, mas sou astuto. Sei prestar atenção ao que os bacanas falam. Gente distinta. Roupa limpa, fala bonita, perna cruzada e tome isso e aquilo.

Nunca que eu me ousei ir além disso. Desde criança minha mãe me dizia que eu tinha que saber qual era o meu lugar. Isso me deixava puto da vida. Eu via outros meninos de tênis novo, pai carinhoso, e eu, que nem conheci o meu, ficava perdido. Criança perdida, sem saber qual era meu lugar no mundo. Se é que eu tinha algum. Alguns moleques da minha turma tinham sangue no olho e só falavam que queriam um trezoitão pra fazer bacana cagar nas calças. Jesuíno era um deles.

É... Aqueles putos que passam com seus carrões e olham pra gente como se nós fosse pano de chão. Jesuíno conseguiu realizar seu sonho e comprou o revólver que tanto queria.
Me lembro bem no dia que ele chegou no barraco, todo alegre. Mostrou a arma e disse que dali pra frente iam lhe respeitar. Seus olhos brilhavam. Mas sua estrela era apagada mesmo. Dois dias depois os puliça deixaram Jesuíno igual a uma peneira.
Saiu na capa dos jornais. Eu achei melhor deixar os bacanas pra lá, que se fodam, vou virar reciclador. Né assim que eles chamam a gente?

Pois é e assim vou vivendo, ou ia, até achar a constituição no lixo. Peguei e fiquei folheando, soletrando, vendo as coisas bonitas que os senhores representantes do povo escreveram. Me lembrei dos coroas no bar dizendo que valia o que tava escrito. Tá na constituição, ninguém pode desrespeitar. Comecei a soletrar. Fui indo, devagar, tropeçando, e o lixão ali. Os urubus me olhavam desconfiados, viam que eu não espantava eles. Eu fui ficando curioso.

Cheguei no Capítulo dois, dos direitos sociais.
Art. 6 São direitos sociais, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e mais coisas.

Vale o que tá escrito. Igual ao que diz o jogo do bicho.Essas palavras teimavam em se bater na minha cabeça, como passarinho preso. Eu pensei: se é assim, quero meus direitos. Sai Dalí decidido a cobrar meus direitos. Já que não tenho colhões como Jesuíno, quero o que tá escrito.

Ao sair do lixão encontro uma viatura. Os homis tavam procurando uns cabras que tinham assaltado um bacana. Me pararam e já foram me mandando levantar a camisa, me empurrando, eu disse que conhecia meus direitos, que eu era um trabalhador, melhor, reciclador, daqueles que o presidente da república se reúne todo final de ano e promete um bocado de coisa. Tomei um bocado de sopapo. Já viu preto e pobre ter direito, safado? E me cobriram de porrada, quanto mais eu falava na constituição, mas eles me batiam. Tá querendo direito, né vagabundo, tá querendo falar como os bacanas é? E tome porrada.

Fiquei sagrando no chão. Os urubus de longe me olhando. Me levantei e fui embora. Hoje, reciclando na porta de uma igreja, ouvi o padre dizer que quem sofre na terra vai ser recompensado com um lugar no céu.

Eu fiquei alí catando, fingindo, pegando uma latinha, uma bituca de cigarro, um olho na missa, outro no padre. Vai que os homis me encontram por aqui. Vão pensar que eu tou querendo roubar o dinheiro da igreja. Nem sabem eles que eu tou com um lugar reservado no céu.
Agora, foda vai ser eu chegar lá, todo feliz da vida, pensando, tou chegando no céu, e o diabo é quem abre a porta. Vai ser foda.


Obs: isso acima é um pouco da ficção que produzo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Engraçado, se não fosse trágico.